A história que vou contar é um pouco triste mas eu preciso contar porque as pessoas precisam de coragem, precisam acreditar que tudo passa. Hoje aqueles momentos ficaram no tempo mas muitas vezes durante aquele processo eu desejei morrer.  Já não pergunto  “por que eu?”.  No fundo sempre soube a reposta! Ação e reação:  eu estava cansada, bebi, dormi,  perdi o controle do volante. O carro saiu da pista, pegou fogo e eu me fodi. Simples assim.

Quero me dar inteira a conhecer e quero não ter que contar tantas vezes essa história. Não sei até que ponto ficaram marcas emocionais. Houve um tempo de grandes dores que me rasgavam o coração. E foi um processo profundo até a sincera aceitação das sequelas que ficaram, das marcas no corpo,…  Carreguei rios, saltei abismos. Não foi fácil.

Não é a primeira vez que falo disso.  Publiquei a primeira vez no site “Samia, a Rainha Frágil” . Sempre que eu tinha que contar para alguém eu me machucava de novo. Era como se tudo voltasse. Eu quase sentia de novo as dores. Então um dia decidi: sentei e escrevi.  De uma só vez. Chorei várias vezes quando escrevia e acho que de tanto chorar, finalmente esvaziei.  Depois disso  nunca mais olhei para aqueles dias com tristeza. Acho que por isso amo tanto escrever.

Aquele texto se perdeu no tempo e este talvez não chegue com a mesma emoção. Mesmo assim sou eu aqui de novo dizendo que sou pessoa.  Leia com carinho!  : )

Tema do post de hoje:
De quando a vida esteve por um triz

Junho/98, feriado de Corpus Christi. Eu tinha uma pousada e acordava muito cedo para preparar o café da manhã dos hóspedes. Ia a praia 2 ou 3 vezes por dia e ficava madrugada adentro na internet.

Naquele dia um amigo chegou da Suécia e bebemos juntos um licor de chocolate que ele trouxe. Conversamos bastante até mais ou menos 22 h   Eu me permiti porque pretendia dormir cedo. Estava realmente cansada.

Pelas 23 h um amigo ligou me pedindo para acompanhá-lo a um barzinho recém inaugurado.  Eu estava mesmo muito cansada e relutei bastante antes de aceitar acompanhá-lo.

Peguei o carro e o encontrei pela meia noite.  Ia ficar só um pouco mas um sujeito até simpático começou a puxar assunto. Ele estava bebendo cerveja e eu o acompanhei. Depois um pessoal  resolveu ir para outro lugar e eu fui, meio por inércia…

Bebi pouco mas a mistura com o cansaço de dias foi quase fatal. Quando voltei ao carro, um Gurgel fechado, aquele de fibra de vidro, já estava um pouco alta. Mas consegui dirigir até quase perto de casa. Dizem que é assim mesmo, que muitos acidentes acontecem perto de casa porque as pessoas tendem a relaxar. E foi exatamente assim comigo. Vinha muito tensa por que na verdade eu sempre tive medo de dirigir bêbada. Fui sempre uma motorista cuidadosa. E faltava uma quadra para chegar em casa.

Depois disso lembro de pouca coisa e o relato fica um pouco confuso. Vejo tudo em flashs  e nunca consegui montar uma cena inteira.

Os bombeiros me encontraram deitada na calçada. Eles acham que alguém me tirou do carro. Perguntamos na vizinhança mas nunca encontramos quem foi. Talvez aqui sim os anjos! (Se houver)

O que se conta é que perdi a direção e o carro foi ter em um post de luz. Como o tanque de gasolina do Gurgel fica na frente, perto do motorista, acredita-se que o incêndio começou ali. Além de estar bêbada eu ainda fiquei presa no cinto. Opa, mas cinto é bom, hein? Ele me protegeu de fraturas e na verdade  estava com problemas no fechamento.  Normalmente eu nem usava, estava sempre adiando o conserto. Mas naquele dia, sabendo que estava alta, preferi fechar. Eu senti medo aquele dia.

Fiquei em observação por 72 horas pois os médicos não sabiam se eu sobreviveria e foram muitos dias (ou meses) em coma. Um dia finalmente acordei e vi minha mãe que não morava aqui.  Estranhei mas dormi novamente e quando acordei era meu filho ao meu lado.   Ele foi me explicando o que havia acontecido. Um acidente…queimaduras..

Eu ainda não entendia direito quanto tinha sido grave. Sob efeito de morfina e me sentindo muito bem, ameacei levantar para irmos embora, mas não tive forças. Mal sabia que aquilo só estava começando…

Eu havia queimado 25% do corpo. A maioria das queimaduras era de 3o. grau. Eu estava toda enfaixada. Haviam limpado a área queimada em um banho horroroso onde se tiravam as peles que se soltavam. Tomei muitos banhos desses…

A queimadura continua queimando por muito tempo, enquanto não se consegue abaixar a temperatura. Quanto mais profunda mais demora. Pode levar meses… Não há nada que se possa fazer sobre isso. A cura são os banhos  e pomadas.

Eu tomava um sedativo muito forte  a cada 6 horas. Meu filho até hoje tira onda comigo porque eu acordava 3 horas antes da próxima dose e implorava para ele pedir outra à enfermeira. Ai ele dava uma voltinha pelo hospital e voltava dizendo que ainda faltava muito tempo. Daqui um pouco, lá estava eu: “Pronto, né? Chama a enfermeira.”  E ele com a maior paciência: “Não, mãe, só passaram 15 minutos. ” A dor era insuportável. Imagine aquela dor de quando você queima o dedo no fogão, repetida e ampliada mil vezes..

Dias e dias de desespero que pareciam nunca acabar. Nesse meio tempo eu lutava com pneumonia por causa da gasolina que respirei. Tive convulsões. Tudo era desesperança. Passei muitas vezes pela morte.

Havia uma fratura no fêmur que precisava ser tratada ou eu nunca mais levantaria da cama. O problema é que eu não poderia ser transferida para um centro cirúrgico pois havia o perigo de infecções. Chamaram um ortopedista que corajosamente, com a ajuda de uma assistente, me “operou” somente com as mãos. Nunca tive problemas. Ele disse que foi Deus que pôs a mão. Talvez… Mas com certeza precisou da coragem e da fé dele.

Havia ainda a ameaça de não andar porque o pé esquerdo foi praticamente todo enxertado e dependeria muito da minha vontade. Aliás , tudo dependia muito da minha vontade. Eu precisava comer para que eles tivessem da onde tirar pele. Durante muito tempo eu não colaborei. A dor era tão grande, as pernas marcadas… Eu realmente não sabia se queria viver. Foi o amor e o cuidado de meu filho e de minha mãe que me deram a força que eu precisava.

Aliás, um dos aprendizados desse momento foi justamente sobre o amor. O amor enchia aquele quarto noite e dia. Estávamos há pouco tempo em Fortaleza e não tínhamos muitos amigos em quem nos apoiar. Vi o  amor tornar-se substantivo concreto. Ele estava ali, flutuava como mil balões coloridos dentro daquele quarto. Minha mãe implorava a Deus para trocar de lugar comigo. Meu filho dizia que suportaria muito melhor tudo aquilo.

Comecei a ficar em pé por alguns minutos. Na verdade um minuto que eu conseguisse ficar em pé, já era festejado. Como um bebê dando os primeiros passos. Formigava, queimava…  Era infernal! Mas segui tentando.  Um dia disse para minha mãe que não me trouxesse mais o almoço na cama. Com ajuda de um andador, começava a andar as 11 da manhã para estar na mesa ao meio-dia. As lágrimas rolavam no meus rosto. Lembro tanto dessa sensação, quase posso sentir as lágrimas ainda rolando. Não conseguia limpar já que as mãos estavam no andador.

De outra vez, eu precisava parar de tomar o Tilex, que é um analgésico muito forte. E quando faltava só um comprimido , eu resolvi que não tomaria mais. Durante anos o guardei cuidadosamente.  Foi uma marco para mim.

Outro desafio era não deixar criar queloides… Sabe como é? Aquele tecido fibroso que fica depois de alguns processos de cicatrização. Para não ficar com esses queloides eu tinha que esfregar muito uma escovinha na pele durante o banho. Aquilo também doía muito. Mas eu fazia.

Tirar a pele era a parte mais dolorosa. Porque eles tiravam pele do mesmo lugar várias vezes, mesmo antes daquele lugar estar cicatrizado. Um dia tive uma convulsão de tanto medo porque no dia seguinte, novamente eles fariam esse processo. Sou muito magra e não tinha mesmo outro jeito naquela época.

Eu vinha algumas vezes no computador para me distrair. Mas estar sentada era um grande desafio. Dobrar as pernas era perigoso porque a pele da coxa e do joelho grudavam. Era como um plástico queimando que gruda. E daí levantar machucava muito. Tinha que descolar uma pele da outra. Como tirar um esparadrapo de um ferimento. Doía demais.

Ser feliz de novo não foi um processo fácil.  Depois de toda aquela dor,  eu precisava ainda lidar com as marcas no corpo. Resgatar a autoestima. Por sorte não queimei o rosto. Tudo se concentrou mais nos pés e na perna esquerda. Durante um tempo eu usava uma luva, tipo uma máscara na perna, e achava que fazia parte do processo de cicatrização. Um dia o médico disse que não, que eu já  não precisava mais usar e que só continuava recomendando por causa de uma questão estética.  Naaa, aquilo era horrível de colocar e era quente demais. Daquele dia começou o processo de cura da alma. . Nunca mais usei a tal máscara.

Meu marido me conheceu pela internet  uma semana antes do acidente. Só nos conhecemos pessoalmente meses depois. Ele me ajudou muito a superar essa fase. Dando apoio, compreendendo minhas angústia.  Fácil falar “Força!” “Siga em frente!” Naaa… A vida às vezes é mais cruel do que as lindas frases de autoajuda. Era preciso muito mais do que isso, era preciso que eu me encontrasse e decidisse por mim que era a hora de voltar a tona. Eu consegui , mas fácil não foi, não! Foi um jogo de espelhos, de resgatar o amor dentro de mim. Pela vida, pelos meus e por mim mesma.

A nova é que tudo passa e aquilo também passou. Não me vejo mais como uma sobrevivente. Sobreviver não foi mérito meu, foram médicos competentes, minha família… Meu desafio era voltar a viver e ser feliz. E eu consegui.

Aprendi muitas coisas, aprendi que os hospitais estão cheios de dor. Vi crianças queimadas, muito queimadas. Vi mãezinhas chorando desesperadas. Ah, as mães!…

Aprendi que em muitos momentos estaremos sozinhos com nossos desafios mesmo recebendo todo o amor do mundo…

Aprendi que a vida está sempre por um triz.

Se for beber, não dirija!