Venho procurando palavras que definam a cena BDSM no Norte/Nordeste porque é fato para mim temos identidade especial. Se por um lado nos distanciamos das normas criadas e cultuadas essencialmente nos grandes centros, por outro, somos extremamente criativos e vivemos BDSM segundo nossas próprias percepções e entendimento.
Eu poderia dizer que vivemos o “nosso” BDSM da melhor forma possível mas seria excludente, como afirmar que vivemos um mundo à parte. Na verdade, não é o “nosso” BDSM, mas é a nossa maneira de viver o que já estava posto: o BDSM nos preceitos SSC, o sadomasoquismo consensual e saudável.
Nosso lema é “Divirta-se com responsabilidade” . E o mais?! Não enchemos o saco de ninguém. Não há tantos simpatizantes ou praticantes na nossa região para que surjam líderes, mestres, titãs. Toda informação é compartilhada entre todos. Um desejo sincero de se conhecer e se dar a conhecer.
Eu já fui tão criticada. Vocês podem imaginar que Rainha Frágil foi uma provocação. Porque eu era muito criticada. Eu amava o submisso, eu gozava. Essa postura era totalmente errada para Rainhas. Eu nunca me importei mas mandei um foda-se quando me autodenominei A Rainha Frágil.
E muitas pessoas ainda hoje ficam intrigadas, afinal não pode haver uma “rainha frágil”, né? Pode sim. Foda-se.
Assim, conhecendo a fundo os mestre que eu sou uma grande incentivadora do “pensar fora da caixa”. Há muito entendi que não tenho que seguir o padrão imposto por alguém que sabe tanto quanto nós mas se posa em mestre só porque fala a um grupo maior do que o nosso talvez , ou porque acha mesmo que o Sul é o Sul Maravilha e pai de todo mundo.
Por tudo isso sou mesmo sensível a pessoas que se posam em mestres como únicos/últimos dignos representantes de uma ilustre dinastia de sábios do BDSM (Nossa, me dá muita preguiça!)
Já apresentei pessoas daqui e suas visões, hoje, somando a toda essa reflexão, apresento o Guaimbé, do amigo amazônida Jean de Sade. (leia entrevista a seguir)
*Entrevista originalmente publicada no blog do Marques de Sade , adaptada para o Frágil Reino.
Jean, bora explicar como surgiu o Guaimbê?
O Guaimbê surgiu de certa forma como provocação. Existe hoje em dia no Brasil uma quantidade enorme de pessoas que eu chamo de “donos do BDSM”, pessoas que querem impor o seu BDSM aos outros. No bondage isso é ainda forte. Aí vinham me dizer: “O que você faz não é shibari”, “O que você faz não é bondage”. Então tá. Mas o que eu faço tem que ter um nome. Foi assim que criei o Guaimbê. É uma provocação, mas é também uma forma de dizer: olha, este é o meu estilo, não venha impor suas regras.
E qual a origem da expressão Guaimbê?
Guaimbé é um cipó usado pelos índios para amarrar as coisas. Eu mudei o acento do “e”, para designar o estilo de amarração. Mas é também uma referência à antropofogafia. O movimento antropofágico, de Oswald de Andrade de Tarsila de Amaral, dizia que a grande característica da cultura brasileira era pegar o que vinha de fora e adaptar, criando algo novo. No manifesto antropofágico, Oswald de Andrade diz: Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos”.
Oswald diz: “Contra todos os importadores de consciência enlatada”. Na época isso representava a necessidade de criar uma arte nacional, de parar de simplesmente imitar o que vinha de fora. O Guaimbê é também algo nesse sentido: Por que não criar um estilo nacional ao invés de simplesmente imitar fórmulas vindas de fora?
Mesmo com a criação do Guaimbê, você continuou sendo criticado?
As criticas provavelmente aumentaram. Mas aí não dava para dizer que não era bondage, ou que não sera shibari, aí ficou mais claro a questão pessoal. Aí comecei a ouvir coisas como: “Isso que você faz é uma porcaria!”, “Isso é muito ruim!”. O bom é que deixou claro que a questão era de gosto pessoal, mas mesmo assim gosto pessoal transvestido de regra geral. Curioso que quase nunca é uma crítica construtiva: “Olha, talvez assim ficasse melhor, ou esse tipo de corda fica melhor para o que você está tentando fazer” ou algo assim. É a crítica pela crítica. Não gostei e pronto, é uma porcaria. Não façam isso. Vou te mandar um tutorial para você aprender como realmente se faz!
E qual o embasamento das críticas? É tudo como eu disse né? Desde 20 anos atrás…
Nenhum. O discurso é que existem regras que todos devem seguir (e, curiosamente, cada um parece ter o seu próprio conjunto de regras que todos devem seguir). Um bom exemplo disso é a questão da cor. A pessoa vem e diz: Essas amarrações coloridas são uma porcaria, uma confusão. Aí eu pergunto: “Não pode usar corda colorida?” “Pode” “Então não pode misturar cores?” “Pode, só não pode do jeito que você faz”. Aí eu espero que a pessoa venha com uma explicação sobre teoria das cores, sobre como você faz uma composição misturando cores para criar harmonia etc, mas não. Para aí no “Do jeito que você faz não pode”. Em outras palavras: eu não gosto disso, então você não pode fazer. É curioso também a questão dos exemplos que eles apresentam como algo a ser seguido…
Em que sentido é curioso?
A pessoa apresenta uma foto e diz: tem que fazer assim (muitas vezes com amarrações totalmente diferentes do que era a minha proposta, às vezes até em partes diferentes do corpo). Aí você pergunta: quem é o autor dessa amarração? A pessoa não sabe, tirou a foto da internet. Ou seja: ela criou uma regra baseada numa foto anônima de internet. Uma outra pessoa me chamou de burro e me mandou um vídeo com um japonês fazendo uma amarração (aliás, a amarração mais básica do mundo, a karada – uma amiga shibarista chama de “karada-vergonha”) e me mandou fazer aquilo. O vídeo estava em japonês. Eu perguntei: quem é essa pessoa, o que ela está dizendo? A pessoa não sabia nem quem era, nem o que ela estava falando. Podia ser só um japonês dizendo: “olha, eu não entendo muito de shibari, mas vou mostrar o que eu sei fazer” rsrsrs. Mas aqui virou regra que o cara manda para o outro com a ordem: “Faça assim!”.
Você já foi acusado de não se preocupar com segurança…
Segurança é o ponto mais importante do Guaimbê. Até pelo fato de que o meu objetivo maior é estético e erótico, eu evito até mesmo amarrações que provoquem dor na minha sub. Mas, olhe só, eu já escrevi dois textos grandes sobre segurança nas amarrações. Um texto sobre os riscos, explicando a questão dos nervos, do sistema circulatório. O outro texto só sobre os cuidados que se deve tomar. A mesma pessoa que me acusou de não se preocupar com segurança nunca escreveu um texto sobre segurança. Talvez a pessoa até entenda muito sobre segurança, mas por que ela escreveria um texto sobre isso? É mais fácil dizer “Olha, bondage é muito perigoso. Você deve aprender comigo e fazer exatamente do jeito que vou te ensinar, ou vai ser perigoso”. É mais fácil manter o mistério do que explicar.
Tem um pessoal, que eu acho que é lá do Sul Maravilha que gosta mesmo disso, né? Coisas que só os iniciados podem saber. Cansa, hein?
Sim. É mais fácil manter o culto e dar a ideia de uma sociedade secreta, com seres divinos que sabem, em contraposição a toda a massa que não sabe. Então é só a regra: não faça assim, faça assado, faça exatamente como eu disser. Claro que não são todas as pessoas do meio que fazem isso. Conheço pessoas do meio, inclusive shibaristas que são pessoas extremamente humildes, abertas, que explicam quando você pergunta, que estão dispostas a compartilhar conhecimento e não se acham donas da verdade. Aliás, pelo que já percebi, os que mais sabem geralmente são os mais humildes.
Você comentou sobre um ritual de amarração…
Sim. Uma vez, em um encontro, vi uma pessoa ensinando uma amarração. E tinha todo um ritual: coloca o corpo assim, o braço tem que estar assim, o outro braço tem que estar assim, aí você vira a mão assim, depois assim, um negócio complicadíssimo. E o cara estava ensinando o nó direito, um dos mais fáceis de se aprender. É o nó que a gente usa para amarrar os cardaços dos tênis!
O ritual era para parecer complicado?
Sim, para parecer que era algo de iniciado. Aí perguntei onde a pessoa tinha aprendido aquele ritual (que, segundo ele, era obrigatório para realizar aquele nó). Esperava que a pessoa me dissesse: eu viajei até o Japão, aprendi com um Nawashi. Mas a resposta foi: aprendi em um tutorial de internet rsrs.
Acho que o que querem mesmo que tudo pareça muito complicado…
Sim, as situações em que amarrei com pessoas olhando, elas diziam: “Parece fácil, não é tão difícil”. Talvez seja isso que irrite tanto algumas pessoas. O fato de eu tirar a mítica da coisa, de que as amarrações só podem ser feitas por seres escolhidos.
Realmente, lembro você mostrando em nossa festa algumas amarrações, o comentário geral foi exatamente esse: “Parece fácil, não é tão difícil” Para mim que não tenho a menor paciência com rituais, foi uma super descoberta. Ficou simples mesmo.
As regras que são divulgadas entre os praticantes de Bondage ou Shibari, são baseadas no que se faz no Japão?
Boa pergunta. Já vi várias versões. Tem gente que diz que na tradição japonesa do shibari não se usa cordas coloridas. Tem gente que diz que se usa. Tem gente que diz, inclusive citando mestres shibaristas, que o shibari obrigatoriamente envolve o aprisionamento da pessoa que está sendo amarrada e que, inclusive, tudo começa pelo aprisionamento das mãos. Se for assim, o karada, por exemplo, não é shibari, embora seja uma amarração japonesa. Por outro lado, já ouvi gente dizendo que isso é bobagem, que o shibari não tem objetivo de aprisionamento, de restrição de movimentos, que as regras do shibari são outras. Já vi gente dizendo que shibari só usa cordas de juta. Outros dizem que usa também algodão. Eu não estudei com um Nawashi, nunca fui ao Japão. Não sei quem está com a razão. Eu me contento em fazer aquilo que me dá prazer e à minha menina. Se você gostar, pode fazer igual, pode acrescentar coisas ao Guaimbê, mas não vou impor meu ponto de vista, meu estilo, como se fosse uma regra que todos vão seguir.
Eu entendo muito. BDSM é que nem Neston: Há mil maneiras de viver! Cada um escolha a sua!