Eu tinha tantas dúvidas sobre Feminização, travestismo e disforias de gênero, que um dia, muito anos atrás, um escravo me presenteou com este interessante artigo que compartilho sempre que possível:
De homem para Mulher: Feminização Forçada, Travestismo e Disforia de Gênero
para Rainha Frágil
#dumuz#_RF
Parte 1 – Introduzindo o tema lentamente…
Uma das práticas possíveis numa relação femdom (dominação feminina) é a feminização forçada. Por feminização forçada vamos entender, como manifestação mínima, a obrigação que a Dominadora impõe a seu submisso de se vestir como mulher, completamente ou apenas algumas peças íntimas femininas.
Dissemos manifestação mínima, porque o máximo estará limitado apenas pelas fantasias da Dominadora e sua cumplicidade com o submisso. Nada impede que uma cena de feminização forçada extrapole a masmorra e a Dominadora o obrigue a se vestir completamente como mulher e se apresentar publicamente como tal. Havendo alguma consensualidade, a imaginação fica bastante ilimitada…
Do ponto de vista do submisso, a prática da feminização forçada pode ser vivida de formas muito díspares que, para efeito de nossa discussão, vamos simplificar em dois casos que, ao nosso olhar, são os mais importantes e óbvios.
No primeiro caso, o submisso não tem prazer em usar as roupas ou a caracterização feminina e por esse prazer não existir, a feminização gera uma sensação de humilhação que leva a um prazer masoquista. Isso acontece particularmente quando o submisso, fora do contexto do sadomasoquismo, partilha e cultiva alguns valores machistas de que a mulher deve “esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque” e bobagens afins.
A prática se beneficia do preconceito contra a mulher para gerar a humilhação. Um outro caminho nessa mesma abordagem é o fato de a Dominadora rejeitá-lo como homem e preferir vê-lo como caricatura de mulher. De qualquer modo, o prazer não vem de estar vestido de mulher, mas da humilhação que isso significa diante de sua Dona e diante de si mesmo.
No segundo caso, o submisso tem prazer em usar as roupas e a caracterização feminina e acaba por usar esse prazer para servir ao prazer de sua Dona. Igualmente pode repetir-se aqui a rejeição da Dominadora à pretensa masculinidade do seu submisso, impondo-lhe a feminização para que possa ficar ao seu lado.
Embora haja ainda o contexto da humilhação e da imposição, eles são mais fracos, pois há o prazer em se travestir por parte do submisso e esse é o ponto de ignição da cena de feminização.
Já sabemos que além do ssc, o sadomasoquismo nos ensina uma outra regra importante: no mundo da sexualidade podemos tudo, menos generalizar. Aqui, é comum a pergunta generalizante: “Será que todo submisso que admite a feminização forçada, no fundo, não é travesti?”, “Será que todo submisso que admite a feminização forçada, no fundo, não é homossexual?” E por aí vai…
Vamos tentar desatar o nó, sem nos enrolarmos mais nele (embora um bondage seja sempre bem vindo)
Parte 2 – Freud na Masmorra
Vamos resumir – num resumo tosco evidentemente 🙂 – as três estruturas que Freud, aquele bom homem, propôs para o nosso inconsciente: Id, Ego e Superego. O Id representa o foco de prazer, o Superego o foco de controle e o Ego, um diplomata, tentando ligar prazer e realidade, administrando id e superego.
Uma das possibilidades que o sadomasoquismo traz é a de uma forte *projeção* do Superego para uma entidade externa, no caso das relações de dominação feminina (femdom), a Dominadora. Ela passa a ser a “administradora dos impulsos” do Id.
Por outro lado, devemos lembrar que, fôssemos todos dirigidos pelo Id, não haveria a menor possibilidade de se estabelecer normas e papéis sociais, pois estaríamos todos atarefados em satisfazer o impulso de prazer (e, de certa forma, o impulso de morte também). Devemos lembrar que quando falamos em orientação sexual, não falamos de uma “característica cultural” ou de uma “característica natural” de uma pessoa, mas falamos de como foram se tecendo, na vida de uma pessoa, as estratégias de satisfação e repressão das formas de prazer do Id, tanto na esfera física como no repertório cultural de possibilidades de satisfação
É uma questão extremamente delicada, porque esse repertório cultural inclui os tabus, as proibições extremas que não devem ser admitidas de forma alguma por um determinado grupo social, mesmo que essas proibições sejam, racionalmente, injustificáveis.
Uma das maiores fontes de tabus são as leis ditas naturais. Deste modo, o incesto nos parece antinatural, a zoofilia nos parece antinatural e, sendo assim, a sociedade estabelece tabus para o incesto e a zoofilia.
Sob o ponto de vista da natureza, parece ser sensato admitir que só há duas identidades sexuais possíveis: mulher e homem, feminina e masculina. A morfologia externa do corpo humano se repete e se divide em dois grupos de corpos: o feminino e o masculino. As raras exceções morfológicas, o hermafroditismo, serão tratados pelas culturas como benção ou como maldição, mas nunca passarão como apenas mais um fato natural…
Toda vez que tomamos algo da natureza e o permeamos com alguma forma de linguagem, construímos um objeto cultural. Os corpos feminino e masculino sofreram as devidas reconstruções culturais e o que era morfologia física passou a ser o ponto de partida de uma coleção de papéis culturais: os papéis de gênero. Quem estudar, verificará que há uma infinidade de definições sobre gênero, nós, aqui, adotaremos a definição de que o gênero é a expressão cultural de uma identidade sexual. É uma definição limitada, mas vamos adiante assim mesmo.
A identidade sexual passou a ganhar uma expressão cultural e social por meio do gênero. Esse processo estabeleceu um vínculo tal entre a identidade sexual e sua expressão cultural que elas praticamente se fundiram: nascer com uma vagina ou com um pênis implica em ter nesses caracteres morfológicos um estigma que predetermina toda uma lista de expectativas e atitudes culturais impostas ao organismo recém-nascido.
Em nossa cultura brasileira, um bebê com vagina será tão logo que possível vestido de rosa e terá sua orelha perfurada para já sair do hospital com um pequeno brinco que nos avise tratar-se de mulher. Um bebê com pênis ganhará roupas azuis e se possível uma mini-camisa do time de futebol de seu pai, quando não bola e chuteirinha.
Não é o pênis que define a maior habilidade em arrotar e cuspir no chão, mas a permissão cultural que será dada ao macho humano para fazer certas porquices. Também não é a vagina que confere uma melhor capacidade culinária. A determinação dos papéis de gênero usará o corpo como justificativa para que a sociedade interfira, oriente, pré-determine e proíba uma série de ações a essas pessoas, conforme seu corpo externalize um pênis ou uma vagina.
Chegamos ao ponto em que as roupas e a forma de apresentação do outro gênero se transformam em tabus. Assim aparecem já no texto da lei hebraica: ” A mulher não deverá usar vestes masculinas, nem o homem se vestirá com roupa de mulher” (Deuteronômio 22,5). É preciso compreender o quanto o texto da Lei hebraica relativiza essa norma. Ela é paralela, por exemplo, à norma de ante um ninho de passarinho que caiu da árvore, deixar a mãe ir-se e pegar apenas os filhotes. Ela era hierarquicamente inferior a um mandamento, como por exemplo, obedecer aos pais. Um filho desobediente poderia ser simplesmente apedrejado (Deut 21, 18).
Não sabemos ao certo porque caminhos a cultura ocidental resolveu eleger como tabu o vestir-se como o gênero alheio e passou a ignorar o cuidado com os passarinhos ou fazer da rebeldia contra os pais uma estratégia de marketing, enfim, cada um busca a repressão que lhe apetece…
O fato é que, no processo de dominação, o masoquista, ao projetar seu Superego na Dominadora, recebe dela a ordem para quebrar um tabu.
Há quem fale em “permissão” para quebrar um tabu, mas devemos lembrar que as permissões e negociações são possíveis ao Ego. Id e Superego é que transitam pelo espaço das transgressões, ordens e proibições…
Na relação de dominação, o último ato do ego do masoquista foi deliberadamente submeter-se incondicionalmente à Dominadora. É, de certa forma e sempre, um ato de rendição. Quem olha externamente vê esse ato como uma rendição do masoquista à Dominadora, mas na dinâmica interna, é uma rendição do ego, que se reconhece como incapaz de se preservar ante os conflitos provocados pelo Id e Superego.
Tentando explicar rasteiramente o que se passa no inconsciente masoquista, diríamos que acontece um Curto-Circuito entre Id e Superego. Por algum motivo, o Id do masoquista desmonta a distinção entre pulsão de prazer e pulsão de morte. Toda a pulsão passa a ser de prazer. Ora, a melhor carta que o Superego tem na mão, para fazer valer suas normas, é a ameaça de destruição. Sem punição, não há norma. Porque não há como a norma nos coagir a fazer o que ela determina. Porém, o inconsciente do masoquista sabota toda e qualquer norma: instila na punição, na sanção que daria validade à norma, um vírus de prazer. A fonte das normas, o Superego, alimenta o repertório de imaginação do Id. Sabotado simultanemante pelos dois pólos que deveria mediar, o ego naufraga, pois onde antes havia conflito, agora há aliança…
O fato é que, a partir daí, o masoquista entra numa espiral de exploração de limites que se torna infinda. A energia do ego se esvai. Observem que é possível ser um masoquista solitário, mas não é possível ser um sádico solitário. A fusão entre pulsão de prazer e pulsão de morte no masoquista gera o alto risco de todas as práticas masoquistas solitárias e limítrofes. É possível se autoflagelar, se automutilar, se autoeletrocutar, se autoasfixiar…é possível perder a noção do limite de sobrevivência e simplesmente morrer. Por isso uma das recomendações aos masoquistas é: não tentem fazer sozinhos.
Em que ponto o masoquista se rende? Isso varia de pessoa para pessoa, alguns sequer começam sozinhos, pois se dirigem imediatamente para outra pessoa. Nem sempre há a necessidade de se passar por uma fase masturbatória de automasoquismo para então entrar no sadomasoquismo com parceiros…
O resultado final, porém, é sempre o mesmo. Estabelecido o contrato sadomasoquista, o masoquista projeta seu Superego na Dominadora, ela personifica todas as normas e todas as punições e concentra toda a possibilidade de prazer. Embora objetivamente isso pareça uma anomalia, uma escravidão, na verdade traz um grande prazer e um grande alívio ao masoquista. A projeção o libera do conflito, o Superego se projeta e o Id ocupa agora toda a vivência interior.
E o Ego? O ego será o vértice de toda a manipulação entre o Id e o Superego projetado na Dominadora. O Id entregará o ego que lhe transmitia as limitações para que seja punido, torcido e revirado pela Dominadora. Como um rato cercado por dois gatos, o Ego fica preso entre o Id no interior e o Superego projetado, sem mais nenhuma capacidade de controle. Terá por função assistir à perversão – agora no sentido literal – de todas as suas estratégias de coordenação do inconsciente.
Um elemento chave desse processo, no sadomasoquismo, é a despersonalização. Ensinado a obedecer à autoridade, por ser uma norma social aceitável, o ego é obrigado a admitir que é um escravo sem liberdade, um móvel, um bicho, um brinquedo, um objeto. Ao obedecer, pode ser obrigado a conflitar com as próprias normas sociais, observar o prazer que vive ao comer fezes, por exemplo, e ver-se incapaz de impedir esse ato, determinado pela Dominadora – o Superego projetado – e vivenciado prazerosamente pelo Id, que extrai prazer de tudo…
A humilhação só é possível porque o ego permanece, pois o gesto que nos humilha precisa ter o significado cultural da humilhação. Se a urina fosse apenas considerada um remédio em nossa cultura, uma chuva dourada não seria humilhante o suficiente para dar prazer. Porém, nossa cultura que nega o corpo, estabelece como abjeta função de limpar latrinas, que dirá do tornar-se uma? Todo esse arrazoado não é acessível ao Id, que o recebe como prazer após o devido sofrimento do ego, que se esforça por entender o que acontece…
Parte 3 – A feminização forçada como despersonalização
O nome “feminização forçada” contém o significado de que a feminização será necessariamente humilhante ao submisso. Diríamos que esse seria apenas o “caso paradigmático” da feminização forçada, aquele primeiro caso, em que o submisso não tem prazer em usar roupas femininas. Nesse caso, ao fazê-lo tornar-se mulher, a Dominadora o despersonaliza, o obriga a desmontar toda a construção cultural de gênero, ao modo como ele culturalmente aprendeu a se ver como homem e obrigá-lo a, apesar do pênis, ser uma mulher.
Para esse tipo de submisso, é uma experiência profunda de rejeição, pois está identificado com seu corpo sexual masculino e com seu gênero masculino. Não é raro submissos entrarem em típica competição masculina para saber quem agüenta mais chicotadas. Ora, suportar a dor em alto grau é, em muita culturas, um ritual de iniciação tipicamente masculino. Ele ainda estaria provando sua força de guerreiro ante os outros guerreiros e, ao ser forte, faz jus a ser o favorito da Rainha. Porém, quando a Rainha pega seu favorito, o veste de mulher e o faz desfilar para convidados e seus colegas escravos, a humilhação é profunda.
Toda sua força, seu treino para a dor, são negados. As virtudes do escravo masculino são negadas. O pensamento e, mesmo, a queixa que pode ser verbalizada por um escravo nessa situação é: Para que tanto esforço se o que você queria era um viadinho? Uma mulherzinha?
Para alguns, isso pode significar mesmo o fim do “encanto” com a relação com aquela Dominadora. Ao julgar a ordem da Dominadora, o submisso chama de volta seu Superego, a projeção acaba, pois ele não suportou ser despersonalizado a ponto de ser feito o objeto de seus próprios preconceitos. Encontrou o seu limite e a partir daí, seu ego retoma a administração do Id e Superego.
Para outros, a negação de sua masculinidade os libera para mais fundo ainda na espiral de despersonalização, sentem-se mais escravos do que nunca, pois o Ego foi aniquilado a tal ponto que não importa o corpo que tenham, o prazer vem da ordem dada pela Dominadora.
A diferença – e a variação – entre essas respostas possíveis, está no quanto o submisso percebe a reversibilidade de seu estado. Ninguém se livra do Ego. É função do Ego manter uma máscara, uma personalidade mais contínua, que socialmente chamamos de eu. No caso do submisso que julga a ordem da Dominadora, temos um ego que não percebe a reversibilidade de seu estado. Identifica-se a tal ponto com sua situação que ela fica insuportável. Ele precisa sair dali. No segundo caso, o submisso percebe que aquele estado é reversível. E é reversível a qualquer outro estado. Então ele se sente livre, aliviado, inclusive para voltar à sua vida cotidiana, pois nem mesmo ela é definitiva…
Nesse segundo caso, ao invés de apegar-se ao ego, o submisso ganha flexibilidade, aprende a tirar o prazer de seus próprios preconceitos, curto-circuita ainda mais Id e Superego. Ele literalmente “passa por uma prova” e se sente mais capaz. É evidente que a contrapartida é uma aumento de dependência em relação à Dominadora, pois essa flexibilidade tem origem naquela incapacidade do ego em sustentar o inconsciente e seus conflitos.
Se para o submisso sobrou internamente o Id como um vazio que se espraia pelo inconsciente, para a Dominadora sobrou um Superego a administrar. É notável como alguns neo-sádicos, após um pouco de experiência prática, começam a se queixar do desgaste de energia em se manter uma relação sadomasoquista. Ao receber a projeção do Superego, os sádicos passam a ter o controle nas mãos. No caso da despersonalização e, em particular, da feminização forçada, cabe à Dominadora o processo de desmontagem. Literalmente, todo o controle fica nas mãos de quem domina, o que representa um duplo desgaste: preservar a si mesmo e preservar o submisso.
É de se notar que o sadismo original, o do Marquês de Sade, não continha essa nova dificuldade. O sadismo em seu estado não-civilizado não implica em consensualidade, ou seja, dane-se o submisso. Quem quer que tenha lido Sade, notou isso. Porém, o sadismo, como prática, acaba exigindo esse “plus” de quem domina: cuidar do próximo para que ele fique vivo o suficiente para que possa continuar a dar prazer sofrendo…
Para muitas Dominadoras a despersonalização proposta pela feminização forçada é tal como outra qualquer. Trata-se de moldar o submisso a seus desejos e caprichos. Tanto faz se o submisso foi transformado em mesa ou mulher. Para outras Dominadoras é realmente uma brincadeira de bonecas feita com gente viva.
Evidentemente, quanto mais chateado e aborrecido ficar o submisso por ter que se vestir e comportar como mulher, mais interessante o jogo fica.
Para muitas Dominadoras a despersonalização proposta pela feminização forçada é tal como outra qualquer. Trata-se de moldar o submisso a seus desejos e caprichos. Tanto faz se o submisso foi transformado em mesa ou mulher. Para outras Dominadoras é realmente uma brincadeira de bonecas feita com gente viva. Evidentemente, quanto mais chateado e aborrecido ficar o submisso por ter que se vestir e comportar como mulher, mais interessante o jogo fica.
Há um prazer todo especial em “vencer” a natureza isso é, domesticar o animal para que ele aja em oposição ao seu instinto. Nesse sentido, a Dominadora manipula as próprias representações culturais dos gêneros para se impôr ao próprio sexo orgânico que o corpo do submisso apresenta. Por esse motivo, há quem veja a feminização como o termo final de todo o processo de submissão. É um extremo, que, como veremos, pode fazer sentido.
Parte 4 – A feminização forçada como solução política
Uma outra possibilidade, bastante surpreendente e interessante sobre a feminização forçada, surge de sua viabilidade como solução política. o “Scum Manifesto” de Valerie Solanas representa, provavelmente, o radicalismo mais extremo dessa possibilidade. É o típico texto que nos faz compreender o que seria o sadomasoquismo contemporâneo se pudesse romper essa teia de delicadeza e bom-mocismo que cerca a proposta do ssc e, num contexto mais amplo, da “igualdade entre os sexos”.
De uma forma muito aguda, Valerie Solanas percebeu, como muitos, que a questão da diferenciação sexual, mais que uma questão moral ou natural, tornou-se uma questão política. Ter um pênis vai muito além de poder cuspir no chão, ser mal-educado, ganhar um maior salário ou mandar no parceiro. Ter um pênis significa um passaporte para o poder e a destruição sistemática do outro nas sociedades machistas, entre as quais encontramos a capitalista.
Percebida a fraude que é o mundo masculino, a mulher assume o controle da sociedade, eliminando tanto o capital como o trabalho, fazendo desmoronar o complexo sistema que justifica a inútil existência dos homens. Como ela diz: “Sendo uma fêmea incompleta, o macho passa a vida procurando se completar, isto é, tornar-se mulher.”
São poucas as alternativas que Valerie Solanas vê para o homem na sociedade do futuro: ele pode permanecer permanentemente drogado, transformar-se completamente em mulher, ser confinado para reprodução até que se desenvolvam técnicas artificiais adequadas ou dirigir-se a um centro de suicídio e se matar.
De todas elas, a única que representa solução de continuidade para o homem é uma feminização radical. Só assim ele seria apto a conviver entre mulheres e o “erro” da natureza seria, enfim, corrigido. Evidentemente, o pequeno texto de Valerie Solanas deve ser lido integralmente, não cabendo muita interpretação ou explicação para sua proposta política para além de seu fundamento: os homens devem ser eliminados de uma forma ou de outra.
A feminização forçada aparece aqui como uma obrigação imposta por um novo Estado e uma nova ordem social. Usamos este exemplo para lembrar que a feminização forçada pode ir muito além do contexto do erotismo, do fetichismo ou do sadomasoquismo. Pode ser uma “solução final” para os dilemas da civilização…
Parte 5 – A feminização forçada como ordem para o travestismo
Adiante veremos que o fênomeno do travestismo é mais amplo que o da feminização forçada e, por isso mesmo, bem mais difícil de caracterizar por uma única definição.
Por ora, chamaremos de travestismo o desejo e a prática de se apresentar como o gênero oposto. Devemos observar que o repertório da travesti está delimitado pelos objetos e papéis culturais reservados a cada gênero.
Vamos, inicialmente nos deter sobre o travestismo fetichista, ou seja, aquele em que a pessoa tem excitação e prazer sexual como resultado do comportar-se ou vestir-se como uma pessoa de gênero socialmente oposto ao seu. Batom, cinta-liga, corseletes, calcinhas, sutiã só fazem sentido para o submisso fetichista se ele compreende o código cultural de vestimentas de sua sociedade. Se as marcas culturais fosse outras, ele buscaria essas outras marcas para seu travestismo.
Neste momento, não vamos nos indagar sobre os motivos que provocam o fetiche, mas sim nos concentrar em sua característica que é ser episódico, delimitado a uma cena ou situação. Ou seja, no travestismo fetichista não há a necessidade de que a pessoa sinta permanentemente a necessidade de se apresentar como o gênero oposto. Ela se satisfaz em se vestir dentro de uma cena sadomasoquista por exemplo, com uma freqüência que pode até ser bem espaçada.
É razoável que, sendo o travestismo um tabu social e estando o controle dos tabus projetado na Dominadora, o submisso manifeste ou insinue seu desejo para a Dominadora, para que Ela ordene a transgressão do tabu.
Podemos discutir, por horas, se nesse caso a feminização é mesmo “forçada”, já que corresponde a um desejo do submisso, porém, é inegável que ele consegue superar melhor seu bloqueio ante o tabu se ordenado pela Dominadora. Ou seja, ele necessitou da força externa da Dominadora para viver seu fetiche e isso não é pouco.
Isso que aqui relatamos como uma “liberação” ante um tabu se repete também em coisas banais numa relação sadomasoquista. Alguns homens tiveram uma educação tão machista que sequer conseguem ser educados com mulheres, pois o simples fato de manifestar gentileza é, em seu sistema de valores, um gesto “efeminado”, então a relação com a Dominadora os ordena para que sejam gentis. Boa educação não é tabu, mas alguns só conseguem praticá-la depois de ameaçados pelo pelourinho…
Dominadoras e dominadores reclamam muitas vezes que precisam controlar o desejo de quebra de limites de seus submissos, que em geral se antecipa ao próprio desejo deles mesmos em dominar. Lembremos que o submisso se pretende um Id sem controle que vê em quem domina um Superego excitado sexualmente…
Deste modo, a ordem para o travestismo fetichista entra no rol dos limites a serem quebrados.
Por algum motivo, o submisso precisa de uma ordem para se travestir. Por um lado, pode se tratar de simples repressão do desejo de se travestir, que o impede de, por si, realizar o fetiche. Por outro lado, há toda a questão da conveniência e oportunidade social de se travestir. Uma Dominadora pode facilmente manter um bom guarda-roupa feminino, com vários tamanhos de roupas, sem ser importunada. Isso é bem mais complexo para o submisso, caso ele tenha também uma vida social masculina, para além dos limites da cena sadomasoquista. Em contextos não-sadomasoquistas também aparece essa questão da conveniência e oportunidade de se travestir, como no caso de festas ou de encontros e relações com outras mulheres ou travestis permanentes.
Como o fetiche se realiza num episódio, o custo social da manutenção de um guarda-roupa pode não ser interessante e muitas vezes o fetiche está em vestir as roupas de uma mulher real. Enfim, como tudo em sexualidade, as experiências podem variar.
O certo é que, neste caso, a feminização forçada funciona como ordem redentora da pulsão gerada pelo fetiche. Até mesmo o ser ridicularizado como mulherzinha, mostrando o quão grotesco o submisso fica com roupas femininas pode ter um caráter liberador, na medida em que lhe dá um parâmetro real de suas possibilidades como mulher e como travesti. Dizer que essa experiência fere a “pureza” do sadomasoquismo é propor regras de comportamento onde elas não existem.
O sadomasoquismo, como transgressão, é fundamentalmente um espaço de experimentação. Deveríamos censurar uma Dominadora que veste um strap-on e sodomiza seu submisso, porque ela está se rendendo à inveja do pênis? A tolice desse tipo de censura está em buscar a pretensão de pureza ou de autenticidade no sadomasoquismo quando, na verdade, está acontecendo uma ruptura de papéis de gênero associada a papéis de sexo, tanto na Dominadora com strap-on como no submisso travestido. É como se as pessoas em cena estivessem reinventando as representações culturais para delas obter um novo prazer. Isso está bem mais próximo da estética do que da ética, do espaço da criatividade do que do ambiente normativo.
O mesmo se aplica aqui à experiência da homossexualidade forçada nas cenas de sadomasoquismo. Seja entre submissos ou entre submissas, ou entre pares de dominação e submissão de mesmo sexo, a homossexualidade forçada não pode ser reduzida a uma “orientação sexual reprimida”. O ser humano é muito mais flexível que o vocabulário médico-terapêutico, que quer impor ao ser humano a camisa de força de uma “orientação sexual com que o indivíduo se define sexualmente na vida adulta”.
A cena sadomasoquista, por ser transgressora em sua natureza, acaba por rir das bem estabelecidas “orientações sexuais”, que, a bem da verdade, são mais orientações de gênero do que sexuais. Bem observadas, as relações homossexuais se definem muito mais por meio de atitudes e representações culturais do que propriamente pelo comportamento sexual. Interessa ao homossexual muito mais o que ele sente e como vive do que exatamente seu objeto de interesse para o ato sexual.
O cultivo da rejeição do corpo feminino pelo homossexual masculino, ou da rejeição do corpo masculino pela homossexual feminina é muito mais uma estratégia cultural de “demarcar limites” para o “mercado das relações sexuais” do que propriamente um dado “natural” ou uma “rejeição” espontânea. Mesmo que um dia se confirmem as expectativas de que “há uma base genética para a homossexualidade”, os cientistas penarão muito para demonstrar porque os homossexuais da sociedade de consumo são tão diferentes dos homossexuais de outras eras, que se manifestavam culturalmente de forma tão diversa e, em alguns casos, bem menos complicada.
O que se abre aqui é uma possibilidade bem mais ampla: se o gênero é uma construção cultural a partir da morfologia sexual, a homossexualidade não seria apenas uma “orientação”, mas uma autêntica fonte de novos gêneros. A partir daí deixamos o parque da cidade e nos perdemos na Floresta Amazônica…
Por incrível que pareça, a mesmíssima situação se aplica à heterossexualidade na cena sadomasoquista. Se um submisso deseja sua Dominadora, sua submissão fica comprometida? Também não. Se uma Dominadora busca o controle para que possa transar como quer com um submisso, isso contamina algo da “pureza” do sadomasoquismo? Também não. Embora seja frequente no imaginário masculino pensar que a Dominadora é em síntese “fria”, uma espécie de “virgem pervertida” que não transa com homens, apenas os devora, o fato é que boa parte das Dominadoras são mulheres heterossexuais que gostam de uma boa transa.
Talvez até mesmo de um amante, diante dos embasbacados olhares dos submissos. Não poucos submissos se decepcionam ao saber que suas Dominadoras têm orgasmo. Agora podemos compreender o porquê dessa decepção. Como depósito do Superego projetado do submisso, a Dominadora é, na verdade, a persona que contém, sob seu invólucro sádico, nada menos que a Mãe do submisso. Como nosso maior arquétipo materno sempre se refere a uma mãe virgem, chega a ser uma obviedade ser tão recorrente esse equívoco dos submissos.
A decepção é na verdade a frustração em saber que a Dominadora é uma mulher com desejos, com um Id que lhe dá pulsões em todas as direções, a fantasia narcísica do submisso de ser o Id pleno da relação se dissipa e a Dominadora perde o encanto. É um reviver do conflito edípico, ao saber que a mãe, afinal, trepa com o pai (aquela puta!). Daí se compreende melhor aqueles casos em que o submisso sai entre ressentido e traído, jurando que afinal, ela não era uma Dominadora “de verdade”. Afinal, ela transa com homens!
Parte 6 – Travestismo e Disforia de Gênero
Deixando para trás o contexto do sadomasoquismo e adentrando ao contexto do travestismo, as coisas não se tornam mais simples.Diferentemente da heterossexualidade e homossexualidade, hoje contidas no gênero “orientação sexual”, o travestismo é considerado doença e está elencado na Classificação Internacional de Doenças (CID), elaborada pela OMS (Organização Mundial de Saúde). O mesmo, aliás, acontece com o masoquismo e o sadismo 🙂 embora haja um movimento nos Estados Unidos e Europa para que ambos deixem de ser considerados doenças.
Interessante notar que na CID o travestismo fetichista aparece como Transtorno de Preferência Sexual e é definido como:
“F65.1 Travestismo fetichista Vestir roupas do sexo oposto, principalmente com o objetivo de obter excitação sexual e de criar a aparência de pessoa do sexo oposto. O travestismo fetichista se distingue do travestismo transexual pela sua associação clara com uma excitação sexual e pela necessidade de se remover as roupas uma vez que o orgasmo ocorra e haja declínio da excitação sexual. Pode ocorrer como fase preliminar no desenvolvimento do transexualismo.”
Também é Transtorno de Preferência Sexual o sadomasoquismo:
“F65.5 Sadomasoquismo: Preferência por um atividade sexual que implica dor, humilhação ou subserviência. Se o sujeito prefere ser o objeto de um tal estímulo fala-se de masoquismo; se prefere ser o executante, trata-se de sadismo. Comumente o indivíduo obtém a excitação sexual por comportamento tanto sádicos quanto masoquistas.”
E nós perguntaríamos: por que transtorno, não é mesmo? 🙂 Por essas e outras que há quem peça a retirada do sadomasoquismo da lista, onde está em péssima companhia, como por exemplo, a pedofilia…
Devemos entender, porém, que há transtorno se há efetivo prejuízo social, ocupacional ou psicológico para o indivíduo, em termos simples, se há uma “queixa” sobre o sadomasoquismo por parte de quem o pratica.
Falamos até aqui apenas do travestismo fetichista, caracterizado pela necessidade não permanente de se vestir ou se apresentar como alguém do gênero oposto com a finalidade de obter prazer sexual.
A não permanência da necessidade e o foco no prazer sexual estrito definem completamente esse estado.
Uma outra possibilidade para o travestismo é a do travestismo bipolar. Nesse caso, a pessoa tem necessidade de se apresentar como alguém do gênero oposto, sem a finalidade estrita de obter prazer sexual e por períodos mais prolongados ou em que os gêneros se alternam.
O Travestismo Bipolar ou Bivalente já pertence à categoria dos Transtornos de Identidade Sexual, sendo assim definido:
“F64.1 Travestismo bivalente: Este termo designa o fato de usar vestimentas do sexo oposto durante uma parte de sua existência, de modo a satisfazer a experiência temporária de pertencer ao sexo oposto, mas sem desejo de alteração sexual mais permanente ou de uma transformação cirúrgica; a mudança de vestimenta não se acompanha de excitação sexual.”
O mais correto seria ter dito: não se acompanha *necessariamente* de excitação sexual, pois afinal ela pode ocasionalmente acontecer, tal como numa mulher que ao se arrumar toda para um encontro se percebe excitada, sem que isso aconteça às seis da manhã de segunda-feira, quando se arruma para ir ao trabalho…
A chave aqui está na categoria. Muitas vezes o que acontece no sadomasoquismo é a superposição de mais de um transtorno de preferência sexual: há tanto o sadomasoquismo como o travestismo fetichista. A feminização forçada apenas evidencia essa superposição. O que se deve observar é que o submisso peregrina por esses transtornos. Nessa categoria ainda estão o fetichismo, o exibicionismo, o voyeurismo, a necrofilia… Essa soma de transtornos é tão comum que a CID ainda define:
“F65.6 Transtornos múltiplos da preferência sexual: Por vezes uma pessoa apresenta mais de uma anomalia da preferência sexual sem que nenhuma delas esteja em primeiro plano. A associação mais freqüente agrupa o fetichismo, o travestismo e o sadomasoquismo.”
Muitos que praticam o SM vão se reconhecer no fetichismo:
“F65.0 Fetichismo Utilização de objetos inanimados como estímulo da excitação e da satisfação sexual. Numerosos fetiches são prolongamentos do corpo, como por exemplo as vestimentas e os calçados. Outros exemplos comuns dizem respeito a uma textura particular como a borracha, o plástico ou o couro. Os objetos fetiches variam na sua importância de um indivíduo para o outro. Em certos casos servem simplesmente para reforçar a excitação sexual, atingida por condições normais (exemplo: pedir a seu parceiro que vista uma dada roupa).”
Por esse motivo, é comum ouvirmos alguém dizer que não é exatamente sadomasoquista, mas antes de tudo, fetichista. Há quem goste de transar usando roupas de couro, que sugerem dominação, sem que, no entanto, as pessoas envolvidas definam papéis. Conheci um professor de matemática que contava se excitar e atingir o orgasmo durante a relação sexual ao calcular mentalmetnte a raiz quadrada de 587,694. Um caso realmente de hospício…
Observando as definições, percebemos que nossos colegas terapêutas estão perto da fórmula da pedra filosofal de Sade e Masoch: muito fetichismo, um tempero de travestismo e um mergulho de sadomasoquismo fazem a alegria dos transtornados em sua preferência sexual.
O travestismo bipolar ou bivalente é um caso à parte, pois, como vimos, nos leva à categoria dos Transtornos de Identidade Sexual. Quando falamos de Identidade Sexual estamos falando na constituição do “eu” fundamental da pessoa. Por algum processo cognitivo a pessoa intui sua identidade sexual. Essa intuição nada tem a ver com sexto sentido. É uma intuição no sentido de uma “visão interna de si mesmo”.
A necessidade do travesti bipolar é satisfazer esse chamado de sua identidade, é algo voltado ao seu eu. Tanto pode ter o caráter público, como acontece com drag queens, travestis do meio artístico ou crossdressers festivas, como em caráter reservado, num crossdressing ou travestismo íntimo e, até, oculto.
A feminização forçada seria completamente ineficaz nesse caso. O único recurso seria a Dominadora zombar da impossibilidade de seu submisso permanecer no gênero oposto. Mas, nesse caso, teria que ser um submisso, ou seja, teríamos que ter *também* a tendência sadomasoquista presente. Não há relação direta entre sadomasoquismo e travestismo bipolar.
E chegamos finalmente à transexualidade, que é também um Transtorno de Identidade Sexual:
“F64.0 Transexualismo Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo é acompanhado, em geral, de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.”
O transexualismo exclui os casos de intersexo e hermafroditismo. Trata-se de uma pessoa morfologicamente pertencente a um sexo que intui sua identidade como a do sexo oposto. Como essa intuição do “eu mesmo” tem por fundamento nosso sistema neurológico, diríamos que há uma discordância do sexo genital e do sexo neurológico.
A DSM-IV, utilizada pela APA (Associação Americana de Psicologia), fala diretamente em Transtorno de Identidade de Gênero, também referida como Disforia de Gênero:
“Há dois componentes no Transtorno da Identidade de Gênero, sendo que ambos devem estar presentes para fazer o diagnóstico. Deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto (Critério A). Esta identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (Critério B).
O diagnóstico não é feito se o indivíduo tem uma condição intersexual física concomitante (por ex., síndrome de insensibilidade aos andrógenos ou hiperplasia adrenal congênita) (Critério C). Para que este diagnóstico seja feito, deve haver evidências de sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo (Critério D).”
Com a busca de uma consolidação entre as classificações CID e DSM espera-se que aos poucos essa terminologia que oscila entre sexo e gênero se acerte. Mesmo porque nem todos aceitam que o gênero seja apenas uma construção cultural. Lembrem-se que nós aqui adotamos essa definição mais restrita, mas quanto mais nos aproximamos da neurologia, mais percebemos que o gênero é uma construção cognitivo-cultural, isto é, a pessoa intuiu seu eu e busca na cultura um repertório para expressá-lo. Não é tão simples quanto parece, não é?
A transexualidade é hoje um campo extenso de estudo. Há uma série de hipóteses sobre as origens da transexualidade. Em termos de idade de manifestação, temos a transexualidade primária – que se manifesta na infância – e a transexualidade secundária – que se manifesta na vida adulta.
A ocorrência da transexualidade primária sempre foi surpreendente: ela apresenta uma recusa por parte da criança em adquirir e utilizar o repertório de gênero adequado ao seu sexo genital. Sua ocorrência constitui num verdadeiro limite para o comportamentalismo exagerado: por mais que se reprima e tente reeducar essa criança, ela insistirá que não só pertence a outro gênero – no sentido do repertório cultural – como a outro sexo – no sentido de que espera que no futuro, seu corpo se desenvolva para o sexo desejado.
Esse comportamento das pessoas transexuais primárias, manifestado na área cognitiva – a pessoa se conhece e se reconhece como de determinado sexo, incompatível com o que podemos observar externamente – levou à hipótese de que haveria uma base neurológica para a transexualidade.
Essa hipótese nos leva a um campo minado: existe diferença neurológica entre homens e mulheres? Ou de forma mais simples: o cérebro dos homens é diferente do das mulheres?
A primeira pergunta que devemos fazer é: diferentes *quando*? Falamos de embriões ou falamos de adultos?
Hoje em dia se populariza uma espécie de “determinismo genético”, assim se alguém é transexual deve haver um gene da transexualidade e esperamos em breve encontrar os genes da burrice, da chatice e do preconceito para retirá-los do genoma humano…
Quem estudou biologia no ensino médio deve se lembrar que “Mulheres são XX e homens são XY”. Só que se um indivíduo nascer XY mas tiverem falta de receptores de determinados hormônios, a genitália será feminina no nascimento e após a puberdade. Sua identidade sexual e de gênero será feminina também. Está inventada, pela natureza, a mulher XY, resultante da síndrome de insensibilidade a andrógenos. Note que esse caso não é de transexualismo (definição da DSM, acima).
Não é só um sistema neurológico, é um sistema neuroendócrino: o trabalho conjunto do sistema nervoso e dos hormônios é que constitui a base cognitiva do que vai ser nossa identidade sexual.
Quando examinamos um embrião temos dificuldade até em saber o sexo do dito cujo (o famoso ultra-som do quarto mês). Diferenças consistentes no encéfalo (vulgo, cérebro) só aparecem a partir dos cinco anos do menino ou da menina. As modificações e diferenciações não se devem exclusivamente ao XX ou ao XY, mas à subsequente alimentação e recepção dos hormônios sobre o sistema nervoso e, pasmem, às atividades cognitivas a que a pessoa for submetida (leia-se aprendizagem espontânea e formal).
Quando se examina um cérebro adulto (e recentemente falecido) algumas estruturas são maiores nos homens, outras são maiores nas mulheres, *em média*. Isto é: se um neurologista receber um cérebro aleatório, sem saber o sexo, poderá dizer: há uma grande probabilidade de ser homem ou há uma grande probabilidade de ser uma mulher, *nada* impede que seja do sexo oposto, porque todos os cérebros variam em torno de uma média *humana* que é a tendência central de todos os cérebros *humanos* (ainda somos da mesma espécie, lembram-se?).
Porém, observou-se que os indivíduos transexuais macho-para-fêmea, isto é, a quem externamente diríamos que são homens e eles possuem identidade sexual feminina, apresentam a medida do volume da porção central do núcleo intersticial da estria terminal menor que o dos machos homossexuais, que o dos machos heterossexuais e que o das fêmeas heterossexuais. Embora seja um estudo inicial, feito com apenas seis encéfalos de transexuais falecidos ao longo de onze anos, é um indício significativo de que o desenvolvimento neuro-endócrino pode estar relacionado à transexualidade. Daí se falar na transexualidade como uma neurodiscordância de gênero.
Por que o estudo não é conclusivo? Pela pequena amostra e por um dado significativo: transexuais, sobretudo as primárias, buscam adequar seu corpo à sua identidade sexual, logo, em algum momento, haverá hormonização. Como o sistema neuro-endócrino é dinâmico, a hormonização, mesmo no indivíduo adulto, pode provocar alterações nas estruturas encefálicas, então podemos ter uma inversão de causalidade: a estria terminal causa a transexualidade, ou a transexualidade levou a uma redução de volume da estria terminal? De qualquer modo, ambos os fenômenos estão relacionados.
Resolver essa questão implicaria em estudar o cérebro de um recém-nascido, mas aí não sabemos se ele será transexual ou não. Sinuca de bico, não é mesmo?
A transexualidade secundária, que se manifesta mais na vida adulta, pode ser simplesmente a transexualidade primária que foi reprimida pela educação ou falta de informação, pode ser causada por eventos do desenvolvimento social e familiar ou por acontecimentos traumáticos da infância/adolescência. Desenvolve-se aí o que hoje se tenta definir como sócio-discordância de gênero: a pessoa escolhe para si uma identidade sexual mais compatível ao papel que deseja viver. É ainda a mesma transexualidade, porém a origem pode ser diversa do que a cognitivo-neurológica.
Lembremo-nos que a CID fala do travestismo fetichista como uma transição possível em alguns casos de transexualidade. Em alguns casos, o travestismo fetichista é, na verdade, a licença que o transexual secundário se dá para viver seu momento feminino. O fetiche enfraquece e o desejo de permanecer mulher se consolida. Recentemente a BBC fez um especial com um jovem japonês que tinha fetiche por sapatos femininos – apresentado também no Fantástico da Rede Globo – esse fetiche vem progredindo para que o rapaz viva sua transexualidade, chegando à hormonização e à cirurgia de redesignação sexual.
Dificilmente a feminização forçada “produziria” um caso de transexualidade. o processo de despersonalização tem sua força na reversibilidade, isto é, na possibilidade do submisso entrar e sair do papel feminino, para poder entrar no papel de mesa, penico, cachorro, o que mais sua Dominadora desejar. Por mais que se projete o Superego na Dominadora, o Superego pode apenas controlar uma identidade, mas não construir uma nova.
Evidentemente, uma pessoa pode apresentar transexualidade e sadomasoquismo ao mesmo tempo. Sua vivência feminina é autêntica e não forçada, logo, poderá ser submissa ou Dominadora *e* transexual. Vamos tomar cuidado ao aplicar apressadamente relações de causalidade. Lembrem-se da velha piada: nem todo mundo que tem aquário em casa é heterossexual…
O uso do travestismo fetichista como passagem para a transexualidade não é único. Mais comum é a passagem pela homossexualidade como caminho para a transexualidade. Entretanto, é comum transexuais mtf relatarem o desagrado pelo sexo anal, como é comum a muitas mulheres e o desagrado pelo interesse de seus parceiros pelo seus genitais masculinos. Ou seja, o parceiro de eleição dessas transexuais são exatamente homens heterossexuais. Daí a necessidade de cirurgia de redesignação de sexo.
Com a facilidade de acesso a tratamentos hormonais, uma outra manifestação possível da transexualidade é a travesti permanente. Observe que a definição da CID cuidadosamente alude à transformação ” tão conforme quanto possível ao sexo desejado”. Assim, há casos de transexualismo em que o sexo desejado corresponde a um corpo que se apresente no gênero feminino e mantenha o sexo genital masculino. É a travesti hormonizada, que implantou seios, mas que mantém seu pênis e orgulhosamente se define como “mulher com vírgula”.
Há quem diga que esse comportamento não é transexual, mas transgênero. Dissemos anteriormente que a polarização de sexo e gênero em apenas duas alternativas era bem precária ante a criatividade do ser humano. A travesti hormonizada bem poderia ser uma nova identidade sexual, a mulher com vírgula mesmo, que cria um novo corpo. Ainda assim, continua sendo um caso de transexualidade.
Parte 7 – Resumo Feminização, Travestismo e Disforia
Como o universo dos nomes e rótulos é infinito, podemos estabelecer um vocabulário mais “leigo”, baseados no comportamento e na intuição manifestas pela *pessoa* envolvida, a seguinte graduação, de acordo com o comportamento *social* corrente:
Feminização forçada – prática exclusiva do contexto sadomasoquista, em que a pessoa submissa, consensualmente, é obrigada a se vestir e se adornar como pessoa do sexo oposto. A pessoa obtém prazer de sua condição de humilhação e subserviência ao ver negada sua condição sexual original. Adicionalmente, a pessoa pode se realizar pelo fetiche por roupas do sexo oposto ou simples travestismo fetichista.
Crossdresser – pessoa que se veste e se adorna de acordo com o sexo oposto. Pode ser um gesto de satisfação íntima (mais próximo do travestismo bipolar) ou de erotização privada ou pública (travestismo fetichista). É ocasional e reversível. Corresponde ao antigo travesti da era pré-hormônios-na-farmácia. Incluem-se nesse categoria as drag queens e drag kings profissionais que se montam para eventos apenas, mantendo o aspecto de seu sexo genital em seu cotidiano.
Travesti – se veste e se adorna permanentemente como o sexo oposto e promove significativa mudança em seu corpo para adequá-lo à imagem sexual desejada. Inclui hormonização e cirurgias corretivas. A pessoa deseja manter o sexo genital de nascimento. Socialmente, prefere se apresentar por seu nome “de guerra”. Por constrição social, pode também se apresentar de acordo com o sexo de nascimento, mas apenas em situações excepcionais. Necessita de adequação de sua documentação à sua forma de apresentação social.
Transexual – compreende quem possui identidade sexual oposta à apresentada por seus genitais. Necessita de modificação corporal permanente e completa, com cirurgia de redesignação sexual. Necessita de reconhecimento da sociedade quanto à sua condição, com modificação de documentação expedida desde o nascimento.
Evidentemente, não se deve confundir a travesti – que não quer modificação genital – com a transexual pré-operada – que quer a modificação genital. Também não se deve confundir o transexualismo com o transtorno de desejo de castração, que é completamente diverso.
Nenhuma dessas quatro condições implica em relação direta com orientação sexual homo ou heterossexual, devendo cada caso ser estudado particularmente em relação a essa característica.
por #dumuz#_RF
Nota final: Esse texto tem apenas caráter informativo e é apenas *uma* visão sobre o problema. As pessoas que desejarem se aprofundar nesses temas devem procurar links e textos científicos adequados. Quanto às nomenclaturas, elas devem ser modificadas brevemente, mas por hora, é o que temos admitido pela comunidade científica.
Se ao ler, você se identificou seriamente com o quesito “transtorno” de algumas das práticas citadas, sugiro que busque ajuda profissional.
Devemos lembrar que a cirurgia de redesignação de sexo já é permitida no Brasil, embora, infelizmente, não haja amparo legal explícito para a adequação de documentação da pessoa após a cirurgia, devendo cada caso ser tratado por um processo específico.
Frágil, eu sempre fui sua fã.. rs.. esse texto é ótimo.. vale replicar em todas as redes sociais… e falar para subs e CDs lerem.. não é perder tempo, é ganhar compreensão, informação… vale muito a pena..
Ótimo texto!!
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Obrigada MissTery !!
Esse texto não é meu mas foi feito pra mim, sob medida. Uma pessoa muito inteligente e admirável com quem tive uma relação muito próxima anos atrás. Vivia o drama da disforia de gênero e era submisso. Nos perdemos de vista ai pelos outros mundos, mas sei que ele gostará de ver divulgado esse e outros artigos, contos, relatos escritos por ele. : )
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Estarei a espera de novos posts.. 🙂
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Nossa, fico um tempo sem vir e chego com um post desse tamanho Kkkkkkkkkk, tem versão resumida?
Brincadeira, comecei a ler, vou terminar quando tiver um tempo, parece interessante
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eu pensei que esse texto já tava aqui. há muitos anos foi escrito, mas continua atual. Tenho guardado com muito carinho.
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