Eu estava há alguns dias anestesiada. Estava assim, um pouco sem esperança. A gente vê as noticias no jornal, a conta bancária, o sol quente fumegando a consciência… A gente vai ficando assim, meio mormaço. Não tinha a menor vontade de aceitar um novo escravo. Por mais que a gente se divirta eles sempre dão um jeito de nos deixar alguma dor de cabeça.

Mas esse encontro estava marcado já há alguns meses e eu não teria como adiar. Prometi que calçaria botas. Vá lá, no começo tudo são espinhos.

Retoquei ainda uma vez a maquilagem. Disfarcei o que pude as olheiras de dias a girar na cama. Eles sempre acham que somos criaturas divinas e que vivemos num castelo encantado. ( E a porra do síndico aumentou de novo a porra do condomínio da porra do apartamento onde eu moro)

Ouvi a campainha. Me irritou. Abri a porta. Mandei que não falasse uma palavra. Fiquei observando. Ora, deus existe, era um belo jovem. Lindo mesmo. Uns olhos claros. Um corpo carnudo bem branquinho.

Não sei como foi aquilo. Mas mal fechei a porta, mandei que tirasse a roupa e peguei o chicote. Virei-o para a parede. E bati. Bati muito. A pele era clara e vi escorrer filetes de sangue. Ele continuou calado. Não soltava sequer um gemido. E sem resistência eu continue até cair exausta no sofá.

Continuou calado. Não tinha ainda permissão para falar. E era um jogo novo pra mim.

Me senti mais aliviada e uma paz tomou conta de mim, como se todo o estresse dos últimos dias nem tivesse existido.

Tenho pra mim que até cochilei por alguns minutos pois quando abri novamente os olhos ele estava em pé ao lado do sofá e olhava pra mim.

O olhar me incomodou também. Levantei e coloquei uma venda em seus olhos depois o conduzi de volta a parede.

Afastei-me. Há dias em que ouvir a respiração deles me incomoda. Sempre tão ofegantes. Ansiosos. Mas, enfim, compreendo que precisam respirar. E eu não pretendia mesmo tampar-lhe a boca. Também gosto de beijo. E esse era um novo jogo. O jogo do silêncio voluntário. O jogo do não-ser.

Ficou um longo tempo ali quieto. Tão quieto. Me senti instigada. Peguei novamente o chicote. A pele ainda estava bastante vermelha. Contraiu discretamente a bunda quando sentiu que íamos iniciar uma nova rodada. Fora vinte, trinta chicotadas, talvez…

E de novo me veio aquela sensação de alivio. Peguei, então uma vela. Coloquei-o de joelhos e fiz estender as mãos. Comecei a pingar. Dessa vez fez um movimento com a boca. Pousei a vela e lhe dei uma grande bofetada. Ele caiu um pouco para o lado mas logo se posicionou novamente.

Sorriu discretamente. Pensei que era o tapa, mas soube algum tempo depois que foi mesmo o gesto de pousar a vela.

Sentiu que eu estava mais tranquila agora. Tivera medo antes, mas não demonstrou. Ao contrário, surgiu com uma força inesperada que sempre me cativava nos escravos. Não era mais um “borra-botas”. Era um homem.

Coloquei-o de quatro e continuei brincando com a vela. Agora eu traçava círculos, formas… Um R, um F… Brincava com velas coloridas. Desenhava uma teia.

Acendi um cigarro e me afastei para observá-lo. Coberto de cera.

Chamei para perto de mim. E permiti que relaxasse a meus pés.

Senti o impulso de acarinhá-lo delicamente. Pareceu-me ali, cansado e ferido, infinitamente frágil. De uma fragilidade elegante. Se mantinha integro em sua doce aparente entrega.

Ficamos ali por um longo tempo. Em silêncio.

Eu não sei se vinha de coração muito vazio, faminta de emoções, mas me enamorei do menino e fitei seus infinitos olhos azuis. Beijei-lhe a boca. E foi assim um beijo profundo. Sentia-me grata e feliz por aqueles momentos de paz. Porque de paz também se vive, afinal.

Na única vez que permiti que falasse, ele falou logo no medo de amar.

E eu expliquei com a voz bem mansa que amar é uma prática segura e que com o tempo não ficaria nada além de um pequeno corte.

Certo que não fui muito honesta sobre segurança e tal, mas eu tomaria cuidado. Naquele momento, aquela boca, aqueles olhos, puxa, eu juraria qualquer coisa…

Gosto quando eles amam.